OPUS DISSONUS

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MARIO FICARELLI - TRANSFIGURADOR E EDUCADOR

                                         


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                     Seu catálogo de obras conta atualmente com mais de 150 composições escritas para quase todas as formações instrumentais: câmara, vocal, coral, cênica e sinfônica. Obteve vários prêmios em concursos de composição no país e no exterior (Brasil, França, Alemanha). Possui diversas obras editadas no Brasil, Europa e Estados Unidos.
                     Dedicado também ao magistério, lecionou Composição e disciplinas relacionadas na FAAM - Faculdade de Artes Alcântara Machado (FMU), de 1977 a 1983, e a partir de 1981 na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde foi professor Livre Docente em Composição, atuando na Direção do Departamento de Música de 1997 a 2005.
                     Estudou piano com Maria de Freitas Moraes e Alice Philips; composição com Olivier Toni.
                     Sua tese de Doutorado defendida em 1995, na Universidade de São Paulo, versa sobre as Sete Sinfonias do compositor finlandês Jean Sibelius. A tese para o Concurso de Livre-Docência, também defendida na ECA-USP em 1995, versa sobre sua 2ª Sinfonia - Mhatuhab.
                     É membro da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea desde 1975, da ABM - Academia Brasileira de Música desde 1994 - tendo participado da diretoria de ambas; bem como da SUISA - Schweizerische Gesellschaft für die Rechte der Urheber musikalischer Werke desde 1992.
                     Seu nome é verbete em destacadas publicações, tais como, Groves Dictionary of Music e Who’s Who in the World (1998).

OPUS DISSONUS - Como se deu seu primeiro contato com a arte de compor? O que o motivou a começar?
MARIO FICARELLI - Meu primeiro contato com a Música, com a Grande Música, deu-se aos 16 anos de idade. Numa noite eu procurava no rádio alguma coisa para distrair. Música, então, não existia para mim. Girando o dial por uma e outra estação quando num momento ouvi uma música extraordinária: era uma orquestra tocando algo que me despertou a imaginação e me pus a contar uma história para minha irmã menor e que combinava perfeitamente com tudo o que ouvia. Desde os 10 anos de idade eu gostava muito de escrever contos e poesias. Tomei de um lápis para anotar o nome daquela música e não entendi nada do que o locutor falou: Acabamos de ouvir de Suite Grand Canyon de Ferde Grofè, com a Orquestra Sinfônica da NBC, sob a regência de Arturo Toscanini.
Orquestra - foi a única palavra que ficou, o resto era para mim desconhecido.

(*) Suite Grand Canyon de Ferde Grofè, com a Orquestra Sinfônica da NBC, sob a regência de Arturo Toscanini.

OPUS DISSONUS - Como funciona seu processo composicional?
MARIO FICARELLI - Antes de começar a compor uma música, penso durante um bom tempo nela – sobre a instrumentação que usaria, a duração, a sensação que produziria em mim, enfim vivo-a antes de começar a escrever. Não existe ainda nem uma nota, nem uma idéia. Uma vez devidamente apaixonado por essa música que só existe pelas sensações que imaginei, inicio a parte mais penosa da composição: é o começar! Diante do papel em branco é como alguém que precisa atravessar um deserto e só tem como ajuda as estrelas e um objetivo: chegar do outro lado. Qualquer nota serve, qualquer fragmento com três ou mais sons já basta. O importante é como usar esses sons. Uma vez que ela tem um começo, a seqüência se faz pelo deixar fluir a intuição – deixar o inconsciente trabalhar e então acontece que acabo ficando escravo dessa música até que a termine. Ela passa a fazer parte de mim em todas e quaisquer situações e ela me chama a todo o momento para continuar a trabalhá-la.

OPUS DISSONUS - Qual ou quais compositores exerceram maior influência em suas obras desde as primeiras composições até hoje?
MARIO FICARELLI - Beethoven exerceu uma influência plena, absoluta, mais pelo homem que era, seu caráter, suas idéias, seus ideais, sua luta e também, claro, por sua música. Quanto a música eu quero dizer que a sua objetividade, a clareza de idéias e o entrosamento entre elas, a concatenação das partes, o livre transitar sem perder a meta... Tudo isso sempre me fascinou. A arquitetura toda de uma obra, seja a Terceira Sinfonia no conjunto de seus movimentos, seja no segundo movimento da Sonata op.26 em seus dois minutos e meio de duração – a construção! A lógica! A objetividade! A força interior! Assim cada vez mais procuro colocar isso em meus trabalhos. As influências... Quando da estréia de minha Segunda Sinfonia “Mhatuhabh”, em Zurique, em 1992,uma hora e meia antes do concerto houve um bate-papo com o público que iria assistir e perguntaram-me exatamente isso: quais as influências que recebe? Disse apenas que se eu for sair de casa e estiver chovendo, me equipo com capa, galocha e guarda-chuva, mas sempre recebo alguns respingos. Nenhum compositor sério está livre de influências e se ele teme isso e quer evitá-las por meio de artifícios... desastre na certa porque ele não será autêntico, não responde ao seu interior e vira manequim, corpo sem alma. O compositor é o elo de uma corrente que se interpõe no elo anterior e no seguinte. Evito nomear meus Grandes Mestres compositores porque posso esquecer algum são dezenas e dezenas. Digo, porém, que aqueles que eu mais gosto são os que prendem minha atenção – aos quais dedico meu tempo a ouvir e estudar-lhes as partituras. Quando estudante ainda sentia-me obrigado a estudar todos não importando se gostava ou não. Hoje seleciono mais.

OPUS DISSONUS - Quais das suas obras podem, em sua opinião, serem consideradas como “introdutórias” ou ainda “obrigatórias” aos que querem conhecer melhor suas composições?
MARIO FICARELLI - Gostaria de destacar entre várias obras, os Quintetos para oboé e quarteto de cordas, para trompa e quarteto de cordas para 2 violinos, 2 violas e violoncelo, As Sinfonias números 2 e 3, Transfigurationis (para orquestra), Ensaio-90 para percussão(3). Afinal, cada obra foi escrita em um momento especial e com toda a paixão. Isso significa que ao citar essas não quero dizer que despreze as demais. Se assim fosse eu não as consideraria em meu catálogo.

OPUS DISSONUS - Dentre suas obras de maior envergadura talvez a Sinfonia No.2 “Mhatuhabh” seja a mais difundida. Li que o nome desta obra é uma referência ao livro "I Nostri Amici Extraterrestri" de Germana Grosso e Ugo Sartorio. Qual a profundidade da relação entre estas obras?
MARIO FICARELLI - Esta Sinfonia foi uma encomenda da Orquestra Tonnhalle de Zurique motivada pela estréia acontecida de Transfigurationis (15 min.), anos antes, pela mesma orquestra. A única condição foi que compusesse uma obra de maior dimensão. Entreguei a 2ª Sinfonia com 42 minutos. Empolgado pela leitura desse trabalho de Germana Grosso, tomei emprestadas três páginas como motivação para compor essa obra.

OPUS DISSONUS - Existem planos para uma Quarta Sinfonia sua?
MARIO FICARELLI - O maestro Roberto Duarte que regeu as estréias dessas minhas obras sinfônicas em Zurique, Linz, Moscou e diferentes lugares no Brasil, desde há muito faz cobranças contínuas da 4ª Sinfonia a ponto de eu dizer a ele: Roberto, quando ela estiver pronta você será o primeiro a saber. Já disse a ele que o 1º e o 3º movimentos escrevi neste ano e espero que muito em breve eu termine o 2º e o 4º. O nome será Sinfonia nº 4 – O Canto da Montanha para orquestra, coro feminino e coro infantil.

OPUS DISSONUS - Seu CD gravado pelo quarteto de cordas da cidade de São Paulo com os seus Quintetos impressiona pela criatividade e ao mesmo tempo por uma personalidade bem marcante. A busca de personalidade em música é a tenuta do seu trabalho?
MARIO FICARELLI - Durante os 14 meses em que estudava com Olivier Toni, em 1970, dizia-me ele: Procure sempre o seu próprio modo de escrever, procure o seu estilo. Mas onde acha-lo? Como eu poderia encontrar o meu estilo? Desde então não me envolvi com modismos ou correntes, procurei escrever a música que tenho dentro de mim. E isso foi o que sempre aconselhei aos meus alunos. Seja sempre você mesmo – não tema!

OPUS DISSONUS - A obra Musissinphos, que esta sendo editada, tem como meta guiar o estudo orquestral. Fale mais sobre esta obra.
MARIO FICARELLI - Esse trabalho colossal, se posso usar o termo, consta de um texto explicativo de como deve ser, no meu entender, o aprendizado coletivo de instrumentos de orquestra. Motivado por uma proposta que recebi em julho de 2009, para fazer a coordenação pedagógica de um projeto para criação de orquestras de crianças e jovens numa das mais populosas favelas de São Paulo. Entrei de cabeça no projeto fazendo de início a proposta de as crianças serem apresentadas aos instrumentos da orquestra de forma direta com professores especializados. Após um mês de discussões, dei-me conta de que não havia material para iniciar qualquer orquestra com estudantes que tivessem apenas seis meses de estudo de instrumento. Fiz várias consultas a regentes que se dedicam a esse trabalho e unanimemente disseram não haver nada nesse sentido. Bem, pensei, se não há, tem que haver! Pus-me ao trabalho planejado de escrever músicas com durações variadas entre um minuto e dois minutos e meio, e que fossem paulatinamente aplicando a teoria musical. Desde as figuras, pausas, fermatas, quiálteras, até chegar a compassos irregulares e utilizando todas as escalas e modos. Sempre atento a coerência pedagógica, escrevi 81 peças que abrangem o básico da teoria musical com a formação de orquestra: 1, 1, 1, 1, 4, 2, timp., perc.(3), vl. I e II, va., vc.,cb. Tive o cuidado de não aplicar articulação e dinâmica nas 35 músicas iniciais deixando para as restantes 46, esses dois elementos, primeiro um e depois acrescentando o outro. Não satisfeito com isso fiz ainda a orquestração de peças originais para piano iniciante, desde Bach, Handel, Czerny, Diabelli, até chegar em Bartok, Prokofieff e até a ousadia de montar uma suíte com base na Sagração da Primavera de Stravinski por causa do que a sua rítmica oferece. Resultado: 66 obras. O trabalho terminou em maio deste ano. Mostrei-o para um amigo de longa data, maestro Roberto Tibiriçá, o qual ficou tão empolgado que apresentou-me dois dias depois ao dr. Heraldo Marin, dono da Editora Algol e que se interessou em publicar esse trabalho. Está pronto e deverá ser lançado em fevereiro ou março de 2011. Para concluir, aquele projeto de criação de orquestras na comunidade... deu em nada. Ou melhor, eu nunca teria trabalhado tanto durante dez meses não fora pela motivação inicial. Restou de positivo esse livro que oxalá venha a colaborar na educação musical em nosso país.

OPUS DISSONUS - Dentre suas obras encontramos 21 transcrições de obras de Nazareth, Villa-lobos e Mignone. Qual a importância que o senhor atribui às transcrições?
MARIO FICARELLI - Na verdade são 17 peças de Nazareth. Isso foi motivado por um pedido de um pianista muito importante no Brasil que faria um trabalho em duo de pianos com um pianista europeu. Curiosamente, quando já havia transcrito cerca de 10 peças o duo se desfez. Resultado: fui adiante. São 17 transcrições livres mantendo todo o caráter e o estilo Nazareth. Quanto às outras que fiz de Villa, Mignone e Popper, foi para um grupo de violoncelos que ao conhecer senti que poderiam ir adiante. Foi um grande prazer. Quanto à importância dessas transcrições pensei em difundir melhor e sob outro prisma obras desses mestres.

OPUS DISSONUS - Ao longo de sua carreira houve sempre um espaço grande dedicado à educação musical de crianças e jovens, seja através de universidade ou não. O trabalho como educador chega a ser uma paixão sua dividindo espaço com a composição?
MARIO FICARELLI - Acontece que quando comecei a estudar música parti do nada. Ia estudar uma hora por dia na casa da professora e depois praticava em minha casa num teclado de cartolina que desenhei com as medidas exatas copiadas do piano de d. Maria de Freitas. Partituras de orquestra... preços proibitivos para as minhas condições; gravações... só as que a rádio transmitia durante uma hora por semana de 2ª a 6ª feira. Só fui pude ver uma orquestra pela primeira vez dois ou três anos depois de começar os estudos. Escolas... as que eram boas (duas ou três) caríssimas. Tudo era muito difícil. A composição tem e sempre teve um espaço especial na minha vida e ajudar crianças e jovens a conhecerem música para alargar-lhes a inteligência sempre foi uma meta para mim desde que comecei a mostrar a minha música em 1970 e dei-me conta de quanto o Brasil carece.

OPUS DISSONUS - Quais são suas impressões acerca da mais nova geração de compositores? Você os conhece?
MARIO FICARELLI - Conheço alguns pelas Bienais de Música Contemporânea Brasileira do Rio de Janeiro que acontecem em anos ímpares desde 1975. Existe uma meia dúzia de bons compositores. Isto é, aqueles aos quais chamo de honestos. Evitarei citar nomes para não cometer o pecado da omissão de algum.

OPUS DISSONUS - Em sua opinião, o que podemos esperar do futuro da música erudita?
MARIO FICARELLI - Enquanto ela for uma ferramenta para melhorar espiritualmente os homens, espero o mesmo que teria esperado Beethoven, ou Wagner, ou Shostakowitch, ou Penderecki.

OPUS DISSONUS - Quais palavras o senhor diria aos aspirantes a compositor?
MARIO FICARELLI - Antes de tudo conhecer o repertório que a grande música oferece desde aquela de povos de lugares muito distantes e esquecidos até as grandes obras da contemporaneidade. Estudar muito o instrumento, analisar tudo o que lhe cai nas mãos desde Bach até hoje. Cultivar a humildade, não ceder aos modismos e procurar tenazmente o seu próprio estilo com toda a honestidade diante da música.

OPUS DISSONUS - Considerações Finais:
MARIO FICARELLI - Agradeço a atenção do Professor Cimirro pela oportunidade que me dá de expressar aqui o meu pensamento.

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Mario Ficarelli


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