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Meu Vilarejo Querido
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Na estrada de terra lá vinha o carro de boi. O som produzido pelo ranger de suas ferragens lembrava aos seus poucos habitantes que estava na hora de fechar portas e janelas. As roupas nos varais eram rapidamente recolhidas. A poeira vermelha envolvia o carro, os bois, as pessoas, as coisas.

De tempo em tempo, chegava a tropa de homens montados em seus cavalos, que, tocando o berrante trazia a boiada. Essa poeira era muito maior, mas eu ficava ali trepada no portão de madeira só para olhar de pertinho os olhos dela. Eram tão grandes, tão brilhosos e tão tristes. Tantos olhos para olhar, tentar diferenciar se havia algum par sorridente, mas não, eram todos igualmente tristes. Até hoje são tristes...

Dobravam a esquina e continuavam a levantar poeira. Só existiam ruas de terra. Depois sumiam não sei para aonde, deixando em minha memória seus tristes olhares.

Minha avó Custódia era uma espécie de médica homeopata. Aprendeu a ler sozinha sob a luz de lamparina, tamanha curiosidade em querer saber o que estava escrito naquele velho livro de medicina que ela ganhou de um médico de Olímpia.

Ela curava os enfermos, fazia partos, ensinava as pessoas o quão era importante manter a higiene dos seus corpos e de suas casas. As dicas de limpeza, juntamente com uma alimentação saudável que incluia a ingestão de refresco de um limão, uma banana e uma maçã por dia, bastava para deixar o organismo forte e longe das doenças. A mulherada prenha deveria levar seus dias normalmente, pois gravidez era sinônimo de saúde e não de doença. Apenas no final da gestação não era bom sair à noite, pois criança é danada, e gosta de nascer em madrugadas enluaradas. A carroça estava sempre pronta a lhe esperar para mais um parto. Agora, colostro para o bebê ficar imune às doenças, muita canjica para o leite materno ser bem substancioso e caldo de galinha para não enfraquecer a mãe. Resguardo de quarenta dias não poderia ser esquecido. Nada de friagem, de pegar peso, e o marido que tivesse paciência e molhasse os pulsos com água fria quando a vontade de sexo quisesse estragar a recuperação da nova mãe.

A vida daquela gente se resumia em trabalho e encontros nas casas dos compadres que era para espairecer e molhar as palavras saboreando café torrado e moído na hora.

Mas como a vida vive num eterno querer, certo dia, Ovídio Custódio Moreira, homem honesto e trabalhador, resolveu, com seus outros amigos, que estava na hora do Vilarejo progredir. Arregaçaram as mangas e foram procurar saber quais os direitos e deveres que teriam que providenciar para emancipar Água Doce já um pouco conhecida como Icém.

Muito trabalharam nas interlocuções, e finalmente conseguiram!

Ovídio teve seu nome escolhido como candidato único para o cargo de Prefeito Municipal de Icém, nas eleições de 03 de outubro de 1954, sendo empossado em 01 de janeiro de 1955. Não quis salário, ou qualquer outro benefício. Era o prefeito que deveria ajudar a população, sem nada querer em troca. Era o amor e a piedade, própria dos que têm mentes sadias, que o impulsionava a lutar por aquela gente sem eira e nem beira.

O Município de Icém, que em tupi-guarani significa Água Doce, tinha dois grandes e maravilhosos rios: Grande e Turvo, onde, em suas margens, outrora pássaros de várias espécies enriqueciam o cenário verde degradê. Lontras e outros animais eram vistos aos montes a se banharem felizes, juntos a umas cento e setenta espécies de peixes, sendo muitas consideradas endêmicas. Represaram o Rio Grande, e o imenso lago formado pela barragem da Usina de Marimbondo, de águas calmas e profundas alavancou o progresso tão desejado.

O tempo passou, e a poeira quase sumiu. As ruas se tornaram negras de piche. Existem ainda os rios Grande e Turvo, mas assim como os olhos tristes dos bois que parece saberem que vão para o matadouro, os rios sabem que estão morrendo. Ressequidos pedem água, vida e beleza que foi embora com os pássaros, com as matas e com os animais. O homem que lutou para melhorar a vida daquela gente, para variar, não pensou na existência dos maléficos de sua espécie, que de olhos feios, sem brilho, pequenos e maus, pensaram egoísticamente explorando e dizimando o local com suas atividades que visam apenas o capital. A pesca profissional, os restaurantes, os campings destruíram a vida daquele local, e nunca mais apareceu uma pessoa decente para assumir o seu lugar.

A cidade cresceu, mas continua pequena, porém, isso gera um certo alívio. Pior mesmo é a pequenez cerebral com que ela vem sendo comandada por políticos oportunistas e inexpressivos.

Saudade da minha avó Custódia, do meu tio Alcides, dos Prefeitos Ovídeo Custódio Moreira, Antonio Galdino de Oliveira e João Ribeiro da Silva.

Saudade dos Rios Grande e Turvo, das Cachoeiras, das matas, dos animais, dos pássaros, das rochas, das ruas de terra, do carro de boi, da boiada triste, da honradez e de Água Doce.

Saudade da pequena que eu fui.

Arrependimento por ter voltado na minha terra que não mais existe.


Nicete Campos
07/12/2014


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