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Homenagem póstuma a uma mãe
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Ela iria completar 91 anos no dia 3 de novembro de 2013, se não tivesse falecido 32 dias antes, isto é, no dia 5 de outubro.

Estava internada há 5 dias na Santa Casa de Misericórdia de São Carlos/SP, quando ela cansou de lutar contra a morte e se deixou ir. No atestado médico pode-se ler "Falência Múltipla dos Órgãos". Acredito nisso! Nessa idade, muitos órgãos começam a falir, e por fim, a pessoa morre. Natural! Normal! Chegamos à sábia conclusão que foi melhor assim. É muito sofrimento para uma pessoa só. As dores por todo o corpo não lhe dava tréguas nem para beber, comer e dormir.

Pena mesmo, doutor, é que o cérebro dela estava novo em folha! Lúcida, percebia e sabia tudo o que estava acontecendo e o que estava por vir. Realmente uma pena que este "órgão" não faliu antes dos outros. Seria excelente se o primeiro a morrer fosse o cérebro. Em muitos casos até acontece, mas ela teve azar. Foi lúcida até o fim!

Nenhuma revolta há. Nascemos e morremos. Apenas preferimos morrer sem sofrimento. Para bem da verdade, quando pensamos na morte receamos até falar sobre ela, mas como é inútil filosofar sobre este assunto, chegamos por fim a um consenso: que seja, mas, sem sofrimento!

A homenagem póstuma que faço à ela, na verdade é para todos os que sofrem (independente do cérebro estar bem ou não). De qualquer modo, minha mãe Irení Conceição Machado teve uma vida muito difícil, assim como a grande maioria dos brasileiros pobres, porém honestos e trabalhadores. Não foi uma pessoa ruim e nem boa; teve seus momentos permeados ora por coisas boas, ora pelas ruins.

Nem sempre soube lidar com as complexidades do "bem" e do "mal". Foi excessivamente severa com os filhos, e bastante generosa com estranhos e amigos, baseando-se apenas em suas convicções um tanto quanto distorcidas entre forças opostas. Acreditou estar fazendo o melhor sem mensurar os problemas causados aos seus filhos advindos de tantas contradições. Foi apenas uma pessoa a mais que viveu da maneira que pôde.

Ainda existem muitas pessoas como ela e/ou vivendo a vida como ela viveu. Erros e acertos, mas com braços enormes para acolher e ajudar muita gente, que, prestando ou não, podiam contar com ela. Acudiu e cuidou de tuberculosos e outros doentes; lavou, passou, costurou, limpou, se doou e se esqueceu de si própria e nem tempo tinha para acarinhar filhos.

Passou fome para guardar seu prato de comida para o preto velho que tanto amávamos; não se cansou em fazer almoço quase no jantar para saciar a fome de quem vagava pelas ruas e estradas; não teve preconceito em relação a nada e ninguém. Dizia ter vindo ao mundo para ajudar pessoas e não para acumular riquezas. Os filhos, desde pequenos, ajudavam nessa difícil tarefa trabalhando muito e estudando pouco por conta do cansaço. Vida sacrificada para ela e para nós. Ela amava fazer isso, nós cansamos e nos revoltamos, mas, apesar das brigas existentes entre nós, ela podia contar com nosso apoio e ajuda financeira. Nunca foi rica, mas nada lhe faltava, apesar da simplicidade que a cercava.

Dia 30 de setembro o SAMU foi chamado. Ela estava apnéica, com dores, abdômen distendido e os últimos exames laboratoriais continham resultados tão fora dos padrões de normalidade que nos assustou. Ela estava sangrando internamente, muito provavelmente pela medula óssea. Aqui abro parênteses para agradecer aos dois funcionários do SAMU que a socorreram prestativos e com agilidade. Peço que me perdoem por nem perguntar pelos seus nomes.

Chegamos na Santa Casa de Misericórdia de São Carlos/SP por volta de 21 horas. Minha irmã cuidava da internação dela que deveria ser feita pelo SUS. Na maca ela aguardava gemendo e tremendo de frio por conta da hipotermia. Não tinha cobertor (mais tarde minha irmã conseguiu um), e nem travesseiro. O Pronto Socorro estava lotado. Gente de tudo quanto é lado se ajeitava como podia: em cadeiras simples, cadeira de rodas, macas, sentados no chão, em pé...Gemiam, solicitavam atendimento, se desesperavam. Médicos plantonistas se desdobravam e minha mãe foi atendida por um humano.

Em compensação, a enfermagem não poderia ser pior: frios, arrogantes, desleixados e até desumanos. Tentei acudir um senhor negro e com aspecto de pobre que havia sido atropelado e estava em uma maca. Não tinha acompanhante e não vi ninguém atendê-lo. Ele tentava se levantar quase caindo da maca e eu pedia socorro.

Uma pseudo-enfermeira berrou com ele e depois de alguma insistência minha, introduziou-o numa sala, e passados uns 15 minutos ela saiu com ele de lá e com muito custo colocou-o em pé e o mandou embora sem um curativo. Numa UTI improvisada naquela sujeira, bem em frente onde estava a maca da minha mãe, tinha um senhor entubado. Em outra sala um senhor gemia de dor. Médicos, enfermeiras transitavam por ali. Minha irmã que é da área da saúde mostrava os exames da nossa mãe para os médicos que ela conhecia.

Todos foram unânimes: minha mãe precisava ser internada e socorrida urgentemente. Um soro foi colocado (ela estava com ascite). O enfermeiro foi grosseiro e pedia coisas não razoáveis a uma paciente naquele estado, como por exemplo, ficar com a mão colada na maca para ele pegar a veia. Mas que burrice! Nem se fosse uma pessoa normal conseguiria fazer o que ele pedia (a maca estava com a cabeceira inclinada). Passaram-se umas 3 horas e minha mãe piorando. De repente vem a seguinte notícia: minha mãe teria que permanecer na maca pois não havia leito.

Ela estava em 16º. Lugar. Teriam que dar alta ou morrer 15 pessoas para que ela pudesse ser internada. Por alguns minutos fiquei parada ali como uma tonta, e depois resolvi perguntar o que fariam então, pois o médico já havia autorizado a internação. Mal responderam, mas deu para entender que ela ficaria ali talvez até morrer. Minha irmã foi verificar quanto custava para interná-la como particular (para isso e UNIMED tinha leito). Responderam que ela teria que fazer um depósito de 50 mil reais. Nós não tínhamos esse dinheiro, então uma ideia tomou conta de mim. Com cinismo e em baixo tom perguntei: e se eu chamar a EPTV? Deram de ombros e disseram: "chame!"

Deixei a minha irmã junto com a minha mãe e fui até defronte ao P.S. onde estava o meu irmão. Depois de conseguir telefone da EPTV e confabularmos o que deveria ser feito, meu irmão entrou para filmar com o celular. Grande espanto! Só estava a minha mãe lá. Tudo estava limpo e arrumado. Fizeram o trabalho rapidamente!

Estranhamente conseguiram um leito para a minha mãe num dos andares da UNIMED. Espanto geral e total, pois quase todos os quartos estavam arrumados e fechados, SEM PACIENTES! Ainda bem que outros se beneficiaram com essa minha atitude de chamar uma imprensa de massa, que nem chegou a entrar, pois tudo já estava em ordem.

Mãe, eu sou "metida a escritora" como a senhora dizia, e por isso me deu vontade de escrever essas linhas. Mas pode ter certeza de uma coisa: a senhora está bem melhor do que nós aqui. Fique em paz, se houver outro lado, e se puder ajudar como a senhora fazia quando viva, tente colocar um pouco de humanidade nos perdidos em ilusões bizarras e capitalistas para que possam tratar ao seu semelhante como gostariam de serem tratados. A senhora foi a mulher dos desvalidos. Por favor, ajude se puder.

Beijos. Qualquer dia, quem sabe, nos encontraremos para um café daqueles que só a senhora sabia fazer. Ah! Com bolinho mineiro, hem? Por ora, descanse em paz...

Nicete Campos
18/10/2013


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