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Cidade Moderna e Humana
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Foi alcunhada como Cidade da Alta Tecnologia, e até fazia jus ao ganho já que universidades e centros de pesquisa nela implantados são de excelência, e reconhecidas mundialmente, graças aos cérebros privilegiados e produtivos nas diversas áreas do saber.
Designação condizente com a produção científica e tecnológica gerada por pesquisadores de altíssima qualidade, mas não se sabe se por ignorância, se por falta do que fazer, se por vaidades diversas, ou por estes e outros motivos de cunho duvidoso, os senhores edis da cidade de São Carlos/SP, resolveram trocar sua justa alcunha, pela de “Cidade Moderna e Humana”.
Constatei a inverdade demagógica e politiqueira no novo perfil “marqueteiro”, por conta da desumanidade em que vive a maioria dos seus moradores. O termo “modernidade” não combina com suas ruas esburacadas, esgoto sem tratamento adequado, iluminação precária, rios poluídos, lixos nas ruas e calçadas sendo levados pela água da chuva a entupir bueiros, e alagar a parte baixa da cidade, onde grande parte do comércio está instalada. Também o mato em terrenos baldios e periferia crescem à vontade, e animais peçonhentos se multiplicam e complicam a vida dos que vivem a esperar intervenção divina, pois a impotência tomou conta daqueles que nada mais esperam dos homens públicos.
O trabalhador honesto é refém dos que lhe cerceiam a liberdade através da insegurança geradora de conflitos diversos, sejam de ordem física, moral ou intelectual. Cada um se vira como pode, e a violência se insurge cada vez mais potente, bestificando o ser que mais nada tem a perder. Providências não são tomadas, pois não é que qualquer coibição pode significar perda de votos? Por não se achar um caminho que agrade gregos e troianos, a justiça termina por ser injusta.
Os políticos cerram seus olhos quando se trata de curral (os bois que se entendam!), e como a maioria é pertencente à manada, o “fazer de conta que” prevalece.
A cidade não é diferente da maioria das outras quando se fala em descaso com o dinheiro público. O uso da verba conseguida com o suor alheio, não deixa dúvida quanto ao seu mal uso. Máquinas inchadas com pessoas que só pensam em si levam cidades inteiras ao caos, criando o que se chama de efeito dominó.
Não consideram a natureza como um todo, e o capital é a locomotiva que determina por quais trilhos os vagões devem correr.
Mas falando da agora CIDADE MODERNA E HUMANA, apenas como ilustração (e tantas outras coisas poderiam exemplificar), ocorreu um fato comigo, e desejo aqui compartilhar. Na “II São Carlos Matsuri”, um evento voltado ao público japonês e seus descendentes, um grande palco no paço do mercado municipal foi montado, para as apresentações culturais ligadas às suas tradições. Barracas com comidas típicas foram disponibilizadas. Dezenas de mesas e cadeiras em locais cobertos e sem cobertura estavam à espera do público que com certeza iria ali buscar um lazer. O evento contou com a parceria da Prefeitura Municipal de São Carlos. Tudo estava muito bem, quando resolvi comprar uma latinha de refrigerante. Também o local que escolhi para sentar não foi um dos melhores, já que um latão de lixo estava disposto ao lado da minha mesa. Final de tarde, e no céu algumas nuvens foram se formando anunciando chuva, que chegou por volta das 18 horas, fazendo com que todos procurassem abrigo nos já lotados lugares cobertos.
Enquanto fiquei ao lado do latão de lixo, pude perceber o quanto ele era visitado, e por diferentes pessoas. Fuçavam num lixo parco incapacitado de ser preenchido. Rostos desacorçoados por nada encontrarem; sempre um ou outro catador chegava antes conseguindo assim, levar uma única latinha que não se sabe como ia parar no lugar mais concorrido! Como o número de catadores de material reciclável aumentava a cada minuto, a disputa para se conseguir uma latinha, dividia-se agora entre as mesas. Nessas, ficava impossível tomar um gole do líquido, sem que mil olhos não ficassem bem abertos e espertos. Latinha ainda cheia, e o desespero dos que dela necessitavam, não deixavam ao seu dono, a tranqüilidade do beber. Rostos desesperados, mãos intranqüilas e afoitas vinham pegar na mesa o objeto do desejo, fazendo com que seus donos ficassem grudados em sua lata, ou que tomassem o líquido às pressas, para não se sentirem incomodados em suas degustações. Olhares inquisidores, desesperados e até raivosos eram dispensados aos que se demoravam a terminar de tomar o líquido. Não o queriam, pois o que lhes interessava não era o conteúdo, e sim a matéria que o guardava.
Crianças, jovens, idosos, homens e mulheres, mas com a mesma intenção: catar latinhas para tentar sobreviver...
Não me contive quando uma senhorinha de cabelos brancos, com curvas de sofrimento sobressaindo nas costas, de sapatos grandes nos pés miúdos, vestido limpo de gente que não se entrega, e blusa fina no frio da noite se aproximou do latão, e nada encontrando, se fixou na minha latinha de refrigerante. A chuva fria molhava seu corpo, mas a impressão é que não lhe incomodava, pois sua intenção determinava seus sentidos. Decidi que a preciosidade seria dela, apesar de ser a última da fila a “secar” minha lata.
Terminei de engolir o líquido, entreguei-lhe o alvo do desejo, e puxei um dedo de prosa, querendo saber um pouco sobre sua vida. Também solicitei autorização para colocar seus dados pessoais neste “conto”. Ela prontamente abriu um largo sorriso de poucos dentes, assentindo e agradecendo: “quem sabe assim, os homens possam me ajudar” acrescentou Maria Ferreiro, de 73 anos de idade, viúva e mantenedora de quatro pessoas que moram com ela, além de seus dois filhos, sendo que um está desempregado. Prefiro aqui omitir seu endereço, mas aos que quiserem constatar a veracidade da história, ou mesmo ajudar, coloco meu e-mail à disposição para passar seu endereço.
Maria, como tantas outras Marias, enquanto casada, vivia melhor em função de R$50,00 (cinqüenta reais) que seu marido recebia como ajuda de custo da Prefeitura. Ela enviuvou, e com isso, essa “enorme” quantia de dinheiro deixou de entrar em sua casa. A fome chegou na família, e Maria encontrou portas e janelas fechadas para o seu desespero de mãe e avó. Percorreu as diferentes “fontes auxiliadoras” que lhe indicaram, mas talvez suas mãos e seus pés calejados, não a deixaram continuar. Estaria desanimada e perdida nas diversas repartições filantrópicas que andou a buscar ajuda? Nas Secretarias do Governo Municipal, entrara em porta errada? Sua história é outra mentira como as das outras Marias espalhadas por esse mundão de meu Deus?
Questionada sobre alguma doença que poderia lhe acometer, extinguindo suas forças para buscar latinhas, e consequentemente sua subsistência e a dos seus, o sorriso foi maior, e a resposta concisa e fria: “Deus não vai permitir doença em mim, Ele me leva e pronto! Sabe que se eu ficar doente, os homens não vão ter remédio para me dar...”
Ri com ela, rimos da vida bandida que vive a rir de nós. Olhei a grande faixa colocada no palco cultural, e perguntei se ela sabia ler. Como acenou afirmativamente, pedi que lesse em voz alta o que lá os “homens” escreveram. Ela apertou os olhos e leu: CIDADE MODERNA E HUMANA!
Olhou-me rindo brejeiramente, e agradeceu por eu ter concedido à ela o troféu mais disputado da festa. Sumiu na chuva fina que caía na cidade de pseudônimo mais incoerente e controverso possível...
Nicete Campos
25/5/2009
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