O sol se levanta em um belo e claro dia . Brisas matutinas frescas acariciam-nos o rosto e o verde deslumbrante da natureza nos delicia a vista e o olfato . Aves cantam , saudando a alvorada . O ritmo do dia pulsa em um convite ao trabalho/suor/alegria .
O dia é longo mas agradável , e a noite cai finalmente . Cansadas, crianças abraçam pais cansados . Todos eles , milagrosamente , trazem nova vida uns aos outros : o riso cascateante de um abraço ; um toque carinhoso de rostos ; um passeio entre os moradores e os bichos de estimação do bairro ; jogos de beisebol nos quais jovens e ousados músculos flexionam-se contra os mais velhos , mas ainda capazes de bater uma bola ; farras de compras dos pequenos e dos grandes em lugares mágicos de tecidos e cores ; divertimento e cansaço . Antes de muito tempo , a noite começa a adensar-se . Ainda à frente , refeições em comum , leituras em conjunto , conversas de que todos participam , cabeças que se juntam para pensar . Uma bela vida .
Finalmente , as crianças já estão dormindo , o brilho da lua acena para Adãos e Evas de todas as idades . Começa a música noturna . Alguns se sentam em terraços , escutando a música da noite e embriagando-se no céu estrelado . Conversam em sussurros , descansando e desligando-se da turbulência de outro dia de trabalho e cansaço . Outros ouvem a música pulsando em cadência cada vez mais alta . Bocas se colam famintas , uma provando ternamente o suco da outra . Braços e pernas se enroscam . O ritmo de bolero dos corpos acelera-se , torna-se mais rápido , chegando a um crescendo em que , suados , se enlaçam , penetram-se , capturam-se mutuamente e em seguida , tristes , belos , se separam e cedem à quietude da noite em carinhosas despedidas e au revoirs .
O problema é que a vida , afinal de contas , não é tão bela assim . Ele se cansa dela e , ela , dele . Não querem que seja assim , mas acontece . Pior ainda , ele não pode suportá-la , nem ela , a ele . Na verdade , ela o enche de medo e ele o apavora . Cada um parece ser a Nêmesis que ameaça o próprio ser do outro .
Esforçam-se . Oh , como se esforçam . Hoje , as pessoas procuram terapeutas, analistas , mestres e especialistas em crescimento humano . Alguns felizardos encontram o caminho , mas são incontáveis os que , mesmo com ajuda e aconselhamento , apenas confirmam a infelicidade em que vivem .
E assim comparecem perante juízes cínicos , entediados , que legalmente sancionam a dissolução do casamento . “ Eu nunca me senti tão feliz na vida . Foi como se um peso terrível tivesse sido tirado de cima de mim ” , dizem . Mas , em seguida , ambos sentem uma terrível solidão e o divórcio não é mais uma festa .
Os terapeutas do Mundo Ocidental trabalham muito , não só pelos outros mas também por si mesmos . Eles , também , buscam gurus . O primeiro idealizado e decepcionante terapeuta é seguido por um segundo e , não raro , um terceiro e até mesmo por um quarto e um quinto . Os buscadores alimentam sem cessar a esperança de que os grandes homens e mulheres em que acreditam os guiem através do vale das trevas . Mas , ao longo dos anos , vêem estupefactos muitos de seus líderes ganharem peso e se fecharem em seus próprios modelos de rigidez e limitação .
Em casa , as crianças deixam de se tocar e abraçar . Frequentemente , rosnam e escarnecem uma da outra . Atacam-se . Quando crescem o suficiente para sentir menos medo , voltam-se vingativas contra as mais acalentadas crenças e rituais dos pais . Olhos de pais , vermelhos , marejados de lágrimas , contemplam os outrora doces e ternos filhos e neles pouca ternura descobrem . As gerações se olham dos dois lados de abismos escancarados de desapontamento. Todos dizem baixinho : ” Você me magoou demais . Eu confiei em você , e você me magoou demais “ . Repetidamente , crianças que queriam o melhor para todos vêem morrer o espírito dos pais e alguma coisa morre nelas , também . Outras, trágicas, rodopiam ininterruptamente no mundo do autista , amedrontadas com o vazio em volta . “ Ele foi sempre um bebê tão bonzinho . Nunca nos criou problemas . Ele ficava deitadinho no berço , divertindo-se calado durante horas “ . Outras crianças vêem o silêncio aproximando-se sorrateiro e são sábias o bastante para explodir em protesto desesperado . Diz um pai : “ Não sei onde ele aprendeu essas coisas . Em nossa casa , ele nunca ouviu uma palavra áspera “ . Outro diz : “ Nós somos uma família dedicada . Em nossa casa , tudo anda na mais perfeita ordem " . Ainda assim , a criança se torna dura e cruel . Ela mesmo não sabe que está tentando derrotar a esterilidade que ameaça sugar-lhe a energia e a vida , e os pais tampouco sabem o que fizeram com ela ... porque , na verdade , suas intenções foram as melhores .
A situação nem sempre é má , claro . Para muitos , há festivais familiares , cheios de alegria e uma galinha gorda na mesa . Os ansiosamente esperados feriados e festas renovam-se todos os anos . Nascem novos filhos e os laços familiares se alongam . Comemoram-se natalícios e outras datas festivas . Mas há também dias de tragédia , que tornam mais unidas as famílias . Gerações que se amam encontram-se em rituais comuns que se tornaram experiências tradicionais com o passar dos anos . Para muitos afortunados , o ano inteiro é abençoado com abraços , conversas e contactos .
Ainda assim , e com uma frequência grande demais , a tragédia abate-se sobre os grupos familiares mais felizes . Muitas vezes , ela chega de fora , como se um destino demoníaco escarnecesse daqueles que ousaram demais ser alegres . Em toda parte em nosso planeta , chiados de pneus anunciam o despedaçamento de corpos humanos , vivos minutos antes . Em toda parte , acidentes estranhos acabam de modo imprevisto com pessoas boníssimas . Um circuito elétrico enlouquece e queima um homem até a morte . Uma máquina de fábrica transforma-se em vampiro e devora o homem que a alimentava um momento antes . Uma embolia inesperada corta o hálito vital de um paciente no exato momento em que ele está sendo tratado por um médico de alta competência . Um remédio antes salvador transforma-se em matador silencioso de alguns pacientes infelizes .
Por toda parte , vírus-abutres pousam nas cercas da vida , à espera do próximo que cairá . Muitas vezes , sentimos que , por algum motivo , o próprio homem convida a natureza a apresentar-se no seu pior aspecto . Certas pessoas são consumidas nas chamas de ódios ferozes que não conseguem apagar . Outras vivem tão devotadamente grudadas em bondade que não adquirem o momentum necessário para viver por si mesmas e , no fim , músculos e nervos saudáveis tornam-se flácidos e morrem . Ainda outras grandes tragédias são geradas diretamente por atos humanos , embora muitas vezes os que assim agem não tenham a menor intenção de serem destrutivos . Não raro , esforçam-se tanto para tornar melhor este mundo que todos os que divergem deles têm que ser eliminados e eles se iludem pensando que estão trazendo a morte em nome da vida .
Em toda parte , vemos sonhos de vidas despedaçados e autênticos Auschwitzes . Exatamente abaixo da superfície de todos nós , há uma história de preocupações e sofrimento . Em nossa linguagem , há pequenas expressões que retratam essa verdade – como , por exemplo , “ Todos têm uma cruz para carregar “ - , mas a verdade real do processo é muito mais profunda do que expressões desse tipo deixam entrever . Uma das dificuldades é que o indivíduo , de modo geral , não admite conscientemente o inferno de sua vida , por medo de ser esmagado por uma dor ainda maior . Outra é que sente embaraço em falar francamente de seus problemas com outra pessoa , com receio de parecer um fracassado . Muitas experiências penosas são mantidas em cárcere privado ( ou assim parece ) , e o resultado é que cada um tem que enfrentar , em relativa solidão , seus dolorosos problemas e derrotas , sem saber que os vizinhos , por trás das cercas brancas de taliscas de suas casas , foram cortados no mesmo pano .
Um dos resultados disso é que as culturas , muitas vezes , não formulam conceitos populares consoladores , que ensinem ao homem que a melhor coisa que pode fazer é esperar , ao longo da vida , experiências profundamente dolorosas . O tema predominante na cultura afirma que a vida é apenas ou principalmente bela .
O que falta nas descrições foclóricas é a lição de que todas as pessoas têm que aguentar as muitas dores profundas da vida e , em seguida , recuperar-se para voltar a vencer . As culturas que desenfatizam os infernos da vida debilitam o homem , porque ele não está preparado para as realidades da existência . Não lhe ensinam honestamente que problemas graves na vida são inevitáveis . E tampouco que dificuldades são intrínsecas ao processo criativo de vida .
Em consequência , ele entra em pânico quando se depara com a dor , o medo e problemas , e foge . Às vezes , as fugas são “ fáceis “ . Ele simplesmente engorda. Ou se torna um chato . Ou ganha milhares de milhões de dólares e acredita que , nesse momento , é feliz . Ou aceita uma crença mágica em algum ídolo pessoal ou em algum dos ismos . Mas há um preço muito real a pagar por todas essas fugas fáceis . Pouco importa que ele dê a impressão de que está se divertindo às pampas . No mundo interior real dos muito gordos , dos muito ricos , dos excessivamente confiantes , há uma triste perda de vivência e uma incapacidade de sentir-se vivo .
Outras formas de fuga da dor da vida são ainda mais graves e mais destruidoras . Alguns fogem para os braços de mortes psicossomáticas . Emoções que não podem dominar sobem à tona sob a forma de doenças que o corroem e lhe despedaçam o corpo , o coração , o cérebro . Milhões de outros fogem para a loucura e , na verdade , matam seu espírito . E há também muitos outros que “conseguem “ , transformando a fuga da vida em galope alucinado de brutalidades e morte para os demais . Sacrificam/assassinam outros indivíduos , como se dizendo : “ Levem-nos , eu , não ! “ . Em toda parte em volta de nós , o mundo do homem é um altar sacrificial , no qual homens desesperados , primitivos, sacrificam-se uns aos outros aos deuses , na esperança de que eles mesmos sejam poupados da não-vivência e da morte .
Droga !
O diabo leve todos os cânceres e ataques cardíacos !
O diabo leve a idiotia das guerras !
O diabo leve a monstruosidade da doença mental !
O diabo leve toda gordura , embriaguez , estupidez !
A vida é bela !
Vale a pena viver !
Há alguém que conheça o caminho ?
Há uma passagem do inferno para a esperança ?
Onde , se existe absolutamente , está o mapa da vida ?
Não sabemos . Ainda assim , para muitos de nós , alguma coisa nos diz que pode haver um caminho de Auschwitz para a vida e que o caminho começa quando o homem ousa reconhecer o Auschwitz que está em si mesmo e à sua volta .
Todos nós somos seres humanos que vivemos na presença da morte . Em toda a nossa vida , a morte está às nossas costas , à nossa volta , à nossa frente . Vivemos até nossas melhores horas em meio ao enigma e mistério do nada e da morte . A espantosa riqueza da alegria de viver é sempre cercada por sinistros , desoladores campos de Auschwitz . Todos nós percorremos sozinhos nosso emocionante e doloroso caminho pela vida . Ao longo da estrada , conhecemo-nos uns aos outros . Frequentemente , pensamos e alimentamos a esperança de que um ou outro de nós conheça o caminho e nos salve dos perigos da viagem . Mas a verdade é que isso jamais acontece . Ninguém conhece realmente um caminho seguro . O melhor que podemos fazer é caminharmos juntos parte do caminho , às vezes de mãos dadas , desfrutando os prazeres da amizade , até amando , mas ainda sabendo que teremos , cada um de nós , de palmilhar nosso próprio caminho .
Será possível que o Auschwitz da vida diária seja uma metáfora , da qual as chaminés reais dos crematórios do campo são representações concretas ? Será possível que Auschwitz crie em esculturas sinistramente reais o inferno que é o viver e o morrer particulares de cada homem ?
Acredito que sim .
Acredito que precisamos compreender o campo de concentração particular que constitui parte tão grande da vida de todos nós . Em vez de fingir que a vida é boa e , em seguida , descobrir nos crematórios que não é bem assim , precisamos conhecer os fatos da dor , da raiva e da vingança . Precisamos conhecer a natureza caprichosa e demoníaca de nosso ser e com que facilidade tornamo-nos cruéis . Em vez de evitar nossas agonias e infernos humanos , até que seja tarde demais e a chamas dos crematórios comecem a saltar sobre nós , precisamos aprender como lutar contra nossa natureza demoníaca . Não devemos jamais esquecer nossas raízes comuns em Auschwitz . Então , nesse momento , começaremos , talvez , a encontrar a saída.
AUSCHWITZ: é o nome de um grupo de campos de concentração, localizados no sul da Polônia, símbolos do Holocausto perpetrado pelo nazismo (Wikipédia).
Sobre o autor: é o Editor-Chefe da Enciclopédia de Genocídio, Diretor Executivo do Instituto sobre o Holocausto e Genocídio, em Jerusalém; professor de Psicologia e Terapia Familiar, e Fundador e antigo Diretor do Programa de Estudos Avançados em Integrativa Psicoterapia no Departamento de Psicologia & Martin Buber Center, Universidade Hebraica de Jerusalém.
Nota: O texto acima é parte integrante do livro “O AUSCHWITZ DA VIDA DIÁRIA”, e me foi ofertado pelo Mestre Haspásio Vieira. Eu quis dividí-lo com os leitores da minha coluna, por considerá-lo extremamente adequado em relação aos nossos questionamentos cotidianos. Faz-nos refletir sobre a prisão escura em que vivemos, nos tornando reféns de nós mesmos, da nossa ignorância e do nosso egoísmo. A ação desprovida da reflexão nos leva ao caos. Aprisionados num auschwitz qualquer de nossas mentes, nada mais no resta por fazer, a não ser caminharmos como bois no pasto, ruminando cabisbaixos o gosto amargo do nada.
Nicete Campos
4/5/2008