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O silêncio da dor
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Na calada da noite sentiu uma forte dor no abdômen. Respirou fundo e caminhou do trabalho até a casa. Não preparou seu jantar, fome não tinha. Optou por ligar a televisão, mas o cérebro malvado não deu trégua. Resolveu tomar um banho, e por que não ir para a cama mais cedo?

A dor lancinante voltou. Sozinho, sem ter a quem reclamar, virou-se de lado. A dor piorou. Lembrou-se da amiga, aquela do apartamento vizinho, e pelo interfone a chamou. A dor gritante e silenciosa o soergueu com custo, deixando-o abrir a porta. Em ato contínuo, um telefonema, e tudo começou a ruir.

Estava num hospital. Não em um qualquer, mas naquele que há quatro anos o hospedara. No mesmo que tanto trauma lhe deixara. Lembranças poucas, mas o inconsciente tudo guardara. Agora jogava em sua cara todo o sofrimento passado, como a dizer que desta vez ele não escaparia.

Sorriu e brincou com o filho adolescente que fora ao seu encontro. Fez piadinha com a ex-mulher, companheira e cúmplice do inferno ali passado. A recordação veio com mais força, sentiram medo, mas disfarçaram coniventes contra a desgraça retornada.

Sentado na poltrona hospitalar, cismou com um pequeno frasco conectado ao tubo que invadia sua veia. O problema não era o frasco em si, posto que um maior também enviava líquido para o seu corpo. Queria que o líquido do frasco pequeno acabasse logo, o grande poderia ficar ali para sempre.

O olhar voltou-se para os aparatos fixados na parede, acima de sua cama. Apontou num gesto de surpresa desagradável, comentando com a ex-mulher que aquilo era lembrança ruim. Ela apenas respondeu para ele tentar enxergar o lado bom da coisa, pois oxigênio encanado, salvava vidas, e graças a ele, salvou a dele também.

-Mas nunca vou me esquecer do cateter que enfiavam no buraco feito em meu pescoço.

A dor silenciara o cérebro. Vagas ou nenhuma lembrança haveria de ficar. Teimosa, voltou ao lugar do primeiro ataque e agora insistia em amedrontá-lo.

Foi embora ex-mulher e filho adolescente. Estavam sobrando em terreno alheio. Levaram consigo outras dores, diferentes em trejeitos, mas iguais na intensidade. Acreditaram estar deixando-o em boas mãos, apesar da vaidade da ex-mulher dizer-lhe que somente ela saberia tomar providências que se fizessem necessárias. A atual mulher marcou sua área com olhares e resmungos. Apesar de não se deixar intimidar, foi embora sabendo que seu filho mais velho a substituiria, afinal ele tinha formação acadêmica na área da saúde, entendedor dos fármacos que ajudariam a salvar o pai. Também, por ter acompanhado da outra vez sua doença, ficaria ainda mais esperto dessa vez.

Pegaram estrada, a distância entre eles não passava de cem quilômetros, mas o vazio que foi preenchido com a dor da preocupação era imenso. Médicos tentavam debelar uma febre insistente e reajustar medicação, para que pudessem dar procedimentos a uma cirurgia de vesícula.

O que se seguiu foi uma reprise da dor impotente diante da estagnação do sistema falido da saúde. A ex-mulher e o filho retornam ao hospital. Agora ele está numa Unidade de Terapia Intensiva. O tempo curto para seis pessoas que esperavam ansiosamente para vê-lo, deixa passagem para quatro. Uma a uma, separadamente, entrava e saía em aflição. A ex-mulher, a segunda a entrar, ao vê-lo em estado de desconforto e desespero total, tenta acalmá-lo. Desesperado pede socorro e que o tire dali. Não se sabe se para protegê-lo, ou se por convicção de atender ao seu pedido, prometeu que iria providenciar sua retirada, contanto que se acalmasse. Ele fingiu acreditar.

O filho mais velho foi o terceiro e ela esperou-o chorando desesperada falando de sua intenção. Não o deixaria à mercê daquela UTI suja, infectada, desprovida de calor humano e eficiência. O filho fê-la desistir de idéia tão absurda. Não percebia que se o tirasse dali, naquele estado, ele morreria?

Pegou estrada de volta, o cérebro a trabalhar incessantemente, o coração a sangrar. Não voltaria no dia seguinte, impossível vê-lo, pois seria, em breve, induzido ao coma.

Ela, se sentindo impotente, resolveu escrever através da internet para a direção do hospital. Contou tudo o que vira, em detalhes e afirmou que se não tomassem providências no sentido de melhorar o atendimento, denunciaria o hospital. Era jornalista e radialista, e usaria se preciso fosse dessas prerrogativas. Em seguida, tratou de buscar em seu cérebro, pessoas influentes que pudessem intervir em favor daquele que ela considerava a pessoa que menos merecia estar passando por aquele inferno. Afinal, ele, um cientista de renome, que tanto ainda havia a contribuir com a ciência, não poderia morrer. Ainda não era chegada sua hora. Muito menos morrer de forma tão desumana. Não que acreditasse que o tratamento dele deveria ser diferenciado dos demais que ali se encontravam em coma, mas nesse Brasil de meu Deus, a ordem é a de quem chora mais sofre menos.

Voltou a visitá-lo dois dias depois e constatou que seus esforços não haviam sido em vão. Apesar do coma induzido, ele estava em paz. Entubado, com sonda naso-entérica, sonda uretral e equipamentos de última geração controlando seus sinais vitais. A UTI parecia outra: roupa de cama, recinto e uniformes alvos, médicos, enfermeiros e pessoal de apoio até em excesso. Beijou-o, alisou seus cabelos, reparou no semblante austero, no corpo todo duro de inchaço, na pouca urina escura na bolsa plástica dependurada. Falou palavras de carinho, fez promessas e pediu como resposta um balançar de pestana, ou um movimento nas mãos. Conseguiu o segundo. Chorou radiante e falou que logo voltaria para que pudessem papear.

Brigou com a namorada dele, que leiga, tentou bancar a esperta, que fingida, não se interessava pelo estado dele e sim, por conversas frívolas e desmioladas com outros acompanhantes com quem fizera amizade boba e inconseqüente. Revoltou-se com suas risadas espalhafatosas, achou-a inconveniente para aquele local e para ele.

Pegou estrada já era noite. Sozinha foi com seus medos e temores, apenas eufórica pelo resultado alcançado. Todos os pacientes saíram ganhando com suas iniciativas. Dia seguinte recebe notícias do filho que houve uma melhora considerável em seu quadro geral, apenas rins e pulmões careciam de cuidados maiores.

Passaram quatro dias e ela não mais voltou. Não tinha condições de enfrentar mesquinharias vindas da namorada do ex-marido que desde o primeiro dia havia ligado para o filho mais velho do primeiro casamento dele na tentativa de unir forças contra uma família que só sabia amá-lo. O mesmo filho que morava no sul do país, e que quando, da sua primeira internação, em coma, dissera não poder visitá-lo, pois estava nos preparativos do seu casamento. Ficara por quarenta e cinco dias internado, por conta de um Acidente Vascular Cerebral de Tronco. Duas vezes enviado à UTI em coma, sem chance alguma de sobrevivência, a não ser por milagre, segundo os médicos, e nem assim, apareceu.

Que amor é esse que só vem à tona quando é para benefício próprio? Pois bem, onze dias após ser chamado, depois de tudo controlado, se empoa de sabedoria, se une à desmiolada e afasta quem de fato o ama e quer ajudar.

Não que a lei dos homens ignorassem que a ex-mulher tivesse prioridade nas decisões a serem tomadas. Obviamente ela sabia disso, mas sabiamente afastou-se para não prejudicar o bom andamento da recuperação do ser querido.

A melhora vem se desenvolvendo rapidamente, se levada em consideração o estado crítico do paciente, com a funcionalidade dos órgãos internos, comprometida. Some-se a isso seqüelas passadas, e temos um quadro clínico bastante preocupante. Percebe-se, então, um lado obscuro do ser, onde forças não desvendadas se insurgem, como a desmentir o sabido.

Os filhos de criação, mais seu querido filho mais novo, razão de sua eterna preocupação, são colocados de lado por causa da mesquinharia que caracteriza pessoas materialistas. Esses, por suas vezes, aguardam o silêncio da dor passar. Sabem que a verdade irá prevalecer, mas o que lhes importa realmente é poder vê-lo de braços abertos e sorridente em seu colo os acolher.

Nicete Campos
9/5/2005


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